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sexta-feira 4 de setembro de 2020 às 13:11h

Doações eleitorais não contabilizadas e ações de improbidade

JUSTIÇA, NOTÍCIAS


Casos recentes têm acenado para o que parece ser uma tendência da parte do Ministério Público: o ajuizamento de ações de improbidade fundadas na suposta prática de caixa dois eleitoral (ou doações eleitorais não contabilizadas).

De acordo com o Conjur, independentemente da tese de que a conduta em questão de fato configuraria ato de improbidade, não se pode tampouco desconsiderar que o manejo daquele tipo específico de ação pode, em tese, ter funcionado estrategicamente como meio de se trilhar, na Justiça Comum, via paralela de responsabilização em relação à dimensão criminal.

É dizer que, inobstante discutível o enquadramento do caixa dois na Lei n. 8.429/1992, a opção em si de aviamento da ação traria consigo o predicado de funcionar como alternativa, em relação à dimensão criminal, teoricamente mais expedita de cominação de inelegibilidade.

A ser válido o argumento de que a Justiça Eleitoral, no exercício de sua competência criminal, seria mais morosa que a Justiça Comum[1], e em se cuidando de caixa dois, aforadas concomitantemente denúncia criminal e ação de improbidade, a hipótese versada no artigo 1º, I, g, se aperfeiçoaria antes das hipóteses versadas no artigo 1º, I, e, 4, e j, todos da Lei Complementar n. 64/1990, com redação dada pela Lei Complementar n. 135/2010.

A questão que se põe, então, e que inspira este escrito, é: afinal, seria possível falar em enquadramento, como ato de improbidade, de recebimento (doação) de recursos eleitorais não contabilizados? Ainda que a resposta dependa de elementos práticos, temos que, em princípio, não.

Em primeiro lugar, a conduta em questão, entendida apenas e tão somente como não contabilização de doações de campanha, não possuiria, a nosso ver, aptidão para, sozinha, atrair qualquer dos tipos previstos na Lei n. 8.429/1992.

Divisando na seara criminal o teor dos artigos 299 do Código Penal e 350 do Código Eleitoral, dali não logramos extrair, a partir de declaração falsa ou incompleta de informações, vulneração à probidade administrativa que deve ser traço essencial da pretensão sancionadora.

Ademais, no que toca ao sujeito ativo exigido para a prática de improbidade, o que se tem é que (i) não sendo o candidato, ainda, agente público, faltaria à ação qualquer vínculo que fosse entre indivíduos e Administração[2], condição indispensável para que se possa, em tese, ofender a probidade; lado outro, (ii) já sendo o candidato agente público, é no mínimo discutível que o recebimento de doação, e sua não contabilização, possua elo com aquela condição pública e, via de consequência, aptidão para reverter em ofensa à Administração.

Sobre o que sumariado em (ii), acima, não se ignora, em absoluto, a dicção do artigo 9º, I, da Lei n. 8.429/1992, normalmente suscitado por quem sustenta ser o caixa dois configuraria improbidade[3], a rezar que: “Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente: (…) I – receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público.”

Ocorre que, mesmo à vista do teor da norma, repisamos nossa posição. Isso porque, ainda que o candidato já seja agente público, o caput do artigo 9º é incisivo ao exigir que a conduta se dê “em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade”, o que, como já antecipamos, não abriga a conduta, sozinha, de recebimento de doação e sua virtual não contabilização. Além disso, bem rememorado que os tipos insertos no artigo 9º exigem demonstração de dolo (REsp 1.193.248, julgado em 24.4.2014), nos soa bastante complexa a evidenciação de que a doação, e sua não contabilização, possam se dar como crença futura em facilitação de qualquer ordem.

A bem da clareza, o que estamos a dizer é que, conquanto o caixa dois mereça repressão, não reputamos que a improbidade, ainda que com seus tipos amplos, forneça o caminho mais adequado — ou mesmo possível — a tanto, eis que divisamos na conduta de não contabilização de recursos eleitorais, em verdade, mais uma das possíveis instrumentalizações da possibilidade de prática de improbidade — quando encontrar contrapartida concedida pelo agente público nessa condição — e menos um ato de improbidade em si mesmo.

Isto é: a exemplo da confusão que por vezes se faz a partir de um atrelamento indissociável entre caixa e dois e lavagem de dinheiro, cremos que, no que toca a caixa e dois e improbidade, é possível que atos de improbidade se ultimem pela via do caixa dois como mecanismo de fluxo de recursos ilícitos; disso não deflui, porém, que sempre que haja caixa dois haverá, indisputavelmente, improbidade.

Dito de outro modo, o caixa dois potencialmente aparelhará, observadas dadas condições, prática de ato de improbidade, mas não consistirá, isoladamente, em improbidade, à falta de tipo legal que o acolha. É falar que, insistimos: se a doação se der em contrapartida a promessa de uso de cargo atual ou efetivação de favorecimento futuro, vindo esse favorecimento a se concretizar, de improbidade até poderá se cuidar, mas não por conta da doação em si, e sim por conta da promessa ou do favorecimento em razão do cargo ocupado, atual ou futuramente.

A título ilustrativo de nossa posição, colhemos decisão relativamente recente, lavrada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, em certo sentido, sintetiza em boa medida nossos fundamentos ao assentar que “improbidade administrativa, em linhas gerais, significa servir-se da função pública par angariar ou distribuir, em proveito pessoal ou para outrem, vantagem ilícita ou imoral, de qualquer natureza, e por qualquer modo, com violação aos princípios e regras presidentes das atividades na Administração Pública, menosprezando os valores do cargo e a relevância dos bens, direitos, interesses e valores confiados à sua guarda, inclusive por omissão, com ou sem prejuízo patrimonial(…) Portanto, a conduta ilícita do agente público, para tipificar ato de improbidade administrativa, deve ter esse traço comum ou característico de todas as modalidades de improbidade administrativa: desonestidade, má-fé, falta de probidade no trato da coisa pública.”[4]

Estabelecida a premissa, asseverou-se, na mesma decisão, que, a não ser quando os recursos eleitorais advenham de desfalque ao erário, não haveria falar em improbidade: as doações “interessariam ao desate acaso suas consequências tivessem repercutido em prejuízo da Fazenda do Município de São Paulo. Mas não foi o que sucedeu. (…) Os artigos 9, 10 e 11 tipificam um sem-número de condutas capazes de tipificar improbidade administrativa. De nenhuma delas consta a realização de reuniões entre empresários e administradores. Prática esta comum, rotineira, e que não deve ser profligada porquanto natural é dirigentes de sociedades ou entidades contratantes reúnam-se para tratar de temas de interesse comum. Isso ocorre, rotineiramente, em todas as esferas da Administração. O que não se tolera é a prática de atos contrários à moralidade administrativa, à legalidade. Se este foi o intento e não se pode dizer que não foi -, o resultado foi nenhum. E cogitação não constitui infração de espécie alguma.

O ponto é importante. como temos reiterado neste espaço, a improbidade, como moralidade ilegal e qualificada, deve resguardar a ação que lhe corresponde como mecanismo extremo e excepcional, destinado a censurar a má-fé deliberada no trato com a coisa pública; daí que não deve ter lugar uma banalização do instituto e uma ampliação de seu escopo, por vezes desmedida.

Firmes em todas essas bases, ecoamos entendimento, já manifestado academicamente por estudiosos, no sentido de que doação eleitoral, percebida na condição de candidato e não de agente público, sem que haja deliberada promessa ou contrapartida efetiva, atual ou futura, de benesses concedidas em razão do cargo, e sem que haja desfalque ao erário, não encontra abrigo num dos tipos dos artigos 9º a 11 da Lei n. 8.428/1992, por mais abertos que eles sejam; de improbidade se poderá cuidar, naturalmente, se àquela conduta se associar outra(s), tipificadas.

[1] A tese foi sustentada pela PGR no Inq 4.435 (http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Questodeordem_eleitoral_criminal.pdf) e potencialmente confirmada por levantamento empírico interessante: “Um ano e quatro meses após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que a Justiça Eleitoral deve julgar corrupção e lavagem de dinheiro quando houver caixa dois de campanha, ao menos 78 casos chegaram à segunda instância, segundo levantamento do Estadão. Destes, três resultaram em denúncias aceitas e dez em arquivamentos. Ainda não houve condenação nos processos enviados por cortes superiores às varas eleitorais. A maior parte dos procedimentos tem origem na Operação Lava Jato e segue na fase de investigação, sem acusações apresentadas pelo Ministério Público”. O Estado de São Paulo. Tulio Kruse e Bianca Gomes. “Lava Jato perde celeridade na Justiça Eleitoral”, 3/8/2020, p. A-4.

[2] “Não figurando no pólo passivo qualquer agente público, não há como o particular figurar sozinho como réu em Ação de Improbidade Administrativa.” (REsp 1155992/PA, Rel. Min. Herman Benjamin, Dje 1º.07.10)

[3] Conferir petição inicial nesse sentido: https://drive.google.com/file/d/1rZSlpOcCtARR9a1Gy0mSmzYy0c51lKiv/view

[4] https://bityli.com/Zu0zF

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