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terça-feira 13 de julho de 2021 às 06:44h

Legislação brasileira gera entraves para produtores de queijo artesanal

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Na quarta-feira (1°), após uma denúncia anônima conforme a Folha de S. Paulo, produtores de queijos na fazenda experimental localizada em São Luiz do Paraitinga, a 173 Km de São Paulo, tiveram 120 kg de queijo, 45 litros de iogurte e 9 kg de requeijão apreendidos e destruídos por fiscais da regional da Defesa Agropecuária do Estado, devido à falta do selo que permite a produção de alimentos de origem animal para comercialização no município.

Desde que começou a produção de laticínios para venda, há cerca de dois anos, o  proprietário Peéle Lemos está à frente da empreitada para conseguir o selo do Serviço de Inspeção Municipal (SIM) —ainda ausente na cidade que tem base na economia agrícola, e é conhecida pela pecuária e pelo turismo rural.

“Desde sempre a gente tentou se regularizar de acordo com nosso tamanho”, comenta. O problema, ao que parece, é que a legislação brasileira possui muitos entraves que dificultam a regularização dos pequenos, bem como não considera aspectos culturais relacionados ao fazer artesanal.

Enquanto em âmbito nacional, a lei que regulamenta o Serviço de Inspeção Federal (SIF) remonta à década de 1950 e foi pensada para contemplar exportadores, na esfera estadual, o último texto que prevê o Registro de Estabelecimento Sob Forma Artesanal pelo Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISP) data de 20 anos e não traz grandes conquistas para a categoria.

“Eu tenho que seguir métricas batidas do que são receitas de queijo. Não aceitam leite cru, cura em madeira e vários processos que pra gente são inegociáveis. A gente quer trabalhar com a história do lugar em que vive e o SISP Artesanal não permite que isso aconteça”, conta Lemos.

Segundo o diretor técnico do Centro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (CIPOA), ligado à Defesa Agropecuária, Bruno Bergamo Ruffolo, prevalece a questão da saúde pública. “Nós temos que balancear as necessidades deles com os requisitos mínimos para que tenhamos um alimento saudável.”

Um dos queijos da Lano-Alto, estilo romano, de sabor intenso – Divulgação
Para o advogado especialista em regulação de alimentos Marco Aurélio Braga, entretanto, a fiscalização não leva em conta a sanidade do alimento, resumindo-se a reunir papéis que atestem a regularidade da pequena produção.

“A legislação faz com que a gente olhe pra produção artesanal querendo que ela se industrialize. Essa exigência de controle de processo e o nível agressivo com o qual a fiscalização atua faz com que as pessoas fiquem na clandestinidade”, avalia.

Segundo a porta-voz do GT Queijos Artesanais de Leite Cru do Slow Food Brasil, Katia Karam, essa perspectiva punitiva tem origem na lei de 1950 e no Riispoa (Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal), ainda muito presente nas universidades.

“É com essa perspectiva higienista que nossos médicos (veterinários) e técnicos que estão nos órgãos públicos são formados até hoje”, argumenta.

Uma das principais polêmicas que rondam as leis dos queijos artesanais diz respeito ao leite cru, ainda que estudos científicos comprovem que a maturação elimina ou reduz a proliferação de microrganismos. “A pasteurização é um processo recente, tem 150 anos, e a humanidade consome queijos de leite cru há dois mil”, fala Katia, lembrando que o produtor detém o conhecimento para monitorar esse processo.

“Esses controles são artísticos. É você observar o clima, a vaca. Tem que entender desde o capim até a maturação. Fazer queijo artesanal e atender à legislação é humanamente impossível”, conta um queijeiro da Canastra (MG) que prefere não ser identificado, sobre a rotina de quem produz alimento e mantém vivo o saber-fazer milenar.

“Aos poucos, a cultura brasileira vai sendo esmagada, abrindo espaço para a ‘pasteurização’, para coisas que não contam a nossa história”, diz a chef Roberta Sudbrack, que viveu situação semelhante no Rock In Rio de 2017 e se juntou à grande corrente de solidariedade que se formou em torno da Lano-Alto nos últimos dias.

Um ano depois do ocorrido com a chef, foi promulgada a Lei do Selo Arte, permitindo que produtores regularizados nos estados e municípios comercializassem seus produtos pelo país —um ano mais cedo e a legislação contemplaria o caso de Sudbrack, cujos 800 kg de linguiças e queijos com selo de inspeção de Pernambuco foram apreendidos por conta do evento na capital carioca.

Na opinião de Braga, o selo artesanal criado há três anos é pouco aproveitado, uma vez que as legislações estaduais e municipais não avançam —cerca de 60% dos municípios brasileiros não possuem sequer o selo local, incluindo São Luiz.

O episódio da Lano-Alto chamou atenção para uma realidade recorrente no Brasil, em que boa parte dos produtores de queijo artesanal seguem na invisibilidade e na informalidade, devido às dificuldades impostas por uma legislação anacrônica.

Apesar do baque, Peéle acredita que o caso sirva como catalisador de mudança. “É colocada luz em algo frágil e delicado. E a gente precisa fazer alguma coisa, senão a gente se perde como cultura”, acrescenta.

Ao resistir a duras penas, os produtores artesanais colaboram não só para a produção de alimento de qualidade, mas para a perpetuação de uma cultura alimentar que é diversa e carregada de sabores. O produtor mineiro dá um recado aos consumidores que gostam do seu queijo: “Apreciem, porque amanhã é outro. No dia em que eu me propuser a fazer o mesmo queijo, eu não estarei mais fazendo o artesanal”.

E assim eles seguem, produzindo um queijo diferente a cada novo dia, assim como os círculos únicos dos rótulos da Lano-Alto, do sol e da lua, e as curvas de Niemeyer.

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