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terça-feira 23 de junho de 2020 às 09:41h

Projeto de lei das fake news pode levar a perseguição política, diz pesquisadora

DESTAQUE, NOTÍCIAS


O projeto de lei sobre fake news que deve ser discutido e votado nesta quinta-feira (25) no plenário do Senado prevê medidas que exigirão coleta maciça de dados dos cidadãos e podem levar a perseguição política, criminalização de movimentos sociais e violação de sigilo de fontes jornalísticas.

Segundo reportagem do jornal Folha de SP, essa é a advertência de Mariana Valente, diretora do Internet Lab e professora de direito e tecnologia do Insper.

Para ela, medidas como a exigência de documentos de identificação para abrir contas em redes sociais e guarda de registros de reencaminhamentos de mensagens pelo WhatsApp representam enorme ameaça à privacidade.

Há mais de 100 emendas ao projeto apresentado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e relatado pelo senador Angelo Coronel (PSD-BA).

Ainda não se sabe qual será o texto final do relatório de Coronel, que será apresentado nesta quarta-feira (24). Mas, segundo apurou a Folha, o texto deve manter a rastreabilidade de mensagens no WhatsApp e a exigência de documentos de identificação para abrir contas em redes sociais.

Qual é a sua avaliação sobre os textos do projeto de lei das fake news que vêm sendo discutidos? O que mais me preocupa são os riscos à privacidade advindos de algumas medidas previstas. Por exemplo, a determinação de que os serviços de mensagens [como WhatsApp] guardem os registros da cadeia de reencaminhamentos até sua origem e esses registros podem ser requisitados por meio de ordem judicial.

Isso significa que o WhatsApp terá de guardar uma quantidade enorme de mensagens, de dados sobre cidadãos. Não irão guardar só os registros das mensagens que tiveram muito encaminhamentos, as que viralizam, terão de guardar todas.

Tecnicamente é viável, mas o que vai acontecer é que será possível saber com quem todo mundo está falando em suas conversas privadas. Por exemplo, alguém faz uma piada em um grupo de amigos, privadamente, e essa mensagem, tirada do contexto, é reencaminhada, vista como uma ameaça, e aí podem rastreá-la até essa pessoa.

Isso pode ser usado para perseguir politicamente. Essa medida também ameaça sigilo das fontes jornalísticas —sob pedido judicial, rastrear de onde veio determinada mensagem encaminhada por um jornalista, por exemplo.

Hoje, pelo Marco Civil da Internet, as empresas só precisam guardar os logs de acesso —quando determinado IP entrou e saiu do WhatsApp, por exemplo.

Agora, vão ter de guardar todos os lugares por onde passou uma mensagem de WhatsApp. Isso vai gerar uma coleta maciça de dados dos cidadãos, o que pode ser usado para perseguição política, criminalização de movimentos sociais e violação de sigilo de fontes jornalísticas.

Os textos em discussão também preveem que as pessoas precisarão apresentar um documento de identidade para abrir uma conta em rede celular. O que acha disso? Eu nunca ouvi falar de nenhum país exigir esse tipo de coisa. A ideia de fornecer documentos é bem intencionada, o objetivo de fazer com que as pessoas se responsabilizem pelos conteúdos que colocam e para que saibamos que são pessoas que existem.

Mas são medidas com muitos efeitos colaterais. Uma delas é vetar pessoas que não têm documentos. Vamos estabelecer mais uma exclusão para elas? Muitas das pessoas não querem se identificar e têm motivos para isso, desde ativistas que podem estar em risco até pessoas homossexuais em uma cidade conservadora do interior.

Elas podem usar pseudônimos, mas precisam apresentar um documento para usar as redes sociais. Esse documento não vai ser público, mas pode ser requisitado pela Justiça, isso cria uma sensação de insegurança. E é um efeito colateral de uma medida que não necessariamente vai ser eficiente. Quem quer fraudar mesmo, vai falsificar documento.

Há aspectos positivos em discussão? Na última versão do projeto do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e dos deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), falava-se sobre o fato de as contas em redes sociais de agentes públicos serem contas de interesse público, e precisarem ser tratadas como tal. Isso é positivo.

​Em entrevista recente publicada na Folha, o diretor-executivo da Avaaz, Ricken Patel, afirma que parte das organizações da sociedade civil no Brasil integram uma ‘coalizão do não faça nada’ e se opõem a qualquer tipo de regulamentação de fake news. Essa coalizão vem atuando de forma muito proativa, inclusive teve atuação essencial na aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados. Ocorre que, quando o projeto de lei de fake news foi apresentado pela primeira vez, não foi proposto de forma dialogada com as organizações do campo. Desde que esse projeto foi proposto, a coalizão tem feito tudo para mitigar danos e tem feito, sim, muitos debates proativos.

Na sua opinião, qualquer tipo de regulamentação de desinformação implica perda de liberdade de expressão ou existe alguma regulamentação possível? Existe um papel do Estado importante na discussão sobre o ambiente informacional e há soluções legislativas possíveis. Mas há dois problemas, de processo e de conteúdo.

Nós discutimos o Marco Civil da Internet por cinco anos. Agora, discute-se uma lei no meio de uma pandemia, num momento em que as comissões não estão funcionando, todas as discussões vão direto para o plenário, as coisas estão muito aceleradas, e as formas de participação estão muito diminuídas. Esse momento é muito inadequado.

Em termos de conteúdo, os diagnósticos mais sofisticados apontam com muita clareza que não existe bala de prata. E há consenso cada vez maior, o ministro Luís Roberto Barroso [atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral] até falou sobre isso no Roda Viva, que é preciso regular a desinformação pelo comportamento e não pelo conteúdo.

Como assim?

Ao se regular pelo conteúdo, entramos em uma arena difícil, determinar o que é desinformação e o que não é, o que seria um conteúdo autêntico ou inautêntico. É muito fácil quando pensamos em um número —Mariana nasceu em 1980. Está errado, nasceu em 1986.

Mas há muitas informações que ficam numa zona cinzenta e há um risco muito alto de se estabelecer um conceito que acabe permitindo a censura de conteúdos legítimos. Há coisas que não são verificáveis, o que não significa que sejam mentira.

Quando você tem alguém julgando o que é conteúdo desinformativo, você está dando um poder para alguém julgar a veracidade das coisas. Além disso, a regulamentação de conteúdo aumenta a possibilidade de manipulação política.

Então, tem surgido um consenso de que é mais efetivo e há maior legitimidade na atividade de controle de desinformação quando você olha para como os atores estão se comportando, como olhar para o disparo em massa de WhatsApp, que entrou na regulamentação do TSE.

Outra discussão bem relevante é a dos robôs. A intenção não é proibir os robôs, tem vários que funcionam como ajuda, mas é preciso rotular os robôs. Coibir comportamento é muito mais fácil do que tentar fiscalizar conteúdo —por exemplo, determina-se que há uma articulação entre contas, por meio de robôs, para produzir um ruído ilegítimo sobre o debate público.

Não é o que estão dizendo, mas sim que estão amplificando um tema artificialmente ou deformando o debate público. Olhar para o comportamento que simula, que distorce. Também há consenso sobre a necessidade de um devido processo em relação a conteúdos removidos pelas plataformas, é preciso existir um espaço para o usuário poder contestar, para garantia da liberdade de informação.

RAIO-X

Mariana Valente, 34 anos – É diretora do Internet Lab e professora da pós-graduação no Insper. É doutora em sociologia jurídica pela Faculdade de Direito da USP, onde também obteve seu título de mestre e graduou-se em direito. Foi pesquisadora visitante na Universidade da Califórnia (EUA), bolsista com certificado em direito alemão pela Universidade Ludwig-Maximilian, em Munique (Alemanha), e pesquisadora do programa Linkage Program, na Universidade Yale (EUA)

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